sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Rua do Amor

Naquela noite iríamos ao lugar. Assim fora o combinado. A curiosidade e o medo se misturavam e o resultado era um misto de sentimentos que só me impulsionavam ainda mais a prosseguir. Seria a minha primeira vez ali.

Era uma quarta-feira de dezembro de 2011. Não me recordo ao certo o dia. Também não importa. Importa o que vi lá. Importa o que aquele lugar fez comigo. A noite estava clara e o céu deslumbrantemente estrelado. Tive a sensação de que ele estava assim porque Deus queria nos acompanhar em cada passo do nosso intento. É. Talvez fosse mesmo isso. Era isso. A beleza do céu contrastava com a ruína daquele lugar, daquelas vidas.

O grupo se dividia em duas partes: uma que ia a frente com panelas de sopa, outra que ia em carros. As duas partes do grupo se encontrariam no início daquela rua pra se separar logo depois. Já eram quase 22 horas quando deixávamos nossos carros nas proximidades do local e esperávamos o restante do grupo se juntar a nós. De ali em diante tínhamos que continuar a pé. Ela era conhecida como “Rua do Amor”. Esse nome soou-me irônico. “Que de amor tinha naquele lugar?” Eu pensava. Uma rua muito estreita, casas ligadas umas às outras, a maioria com portas improvisadas, esgoto a céu aberto. Que amor poderia haver ali? Uma parte do grupo ficou logo no início. Sua função era a de entoar canções que pudessem preparar o ambiente e, é claro, as pessoas para se juntar a nós. Bocas e corações se abriam para expressar palavras que pudessem alcançar aqueles seres que ali viviam ou transitavam.

Decidi ir com a outra parte do grupo. Tínhamos que percorrer outras ruas daquele lugar no intuito de convidar pessoas para tomar uma sopa. A sopa era, na verdade, apenas uma estratégia para reunir gente. Queríamos mesmo era o coração delas. Sim, corações tão chicoteados pela vida, pela miséria.

A Feirinha, como é conhecido aquele lugar, é um emaranhado de ruas e casas. Apesar de o nome no diminutivo supostamente sugerir inocência e bondade, tal qual a Rua do Amor, é um lugar sombrio, miserável, desumanamente habitado. Seus principais moradores e transeuntes são drogados, traficantes, prostitutas e algumas pouquíssimas pessoas de bem. A medida que adentrávamos naquele espaço, percebíamos o odor gradativamente aumentar, assim como a quantidade de insetos, de bichos-humanos, de humanos-bichos. Os espaços abandonados eram ocupados pela escuridão e por seres em ruína preocupados em se esconder de quaisquer olhares curiosos. Ali perto, do outro lado da rodovia, lugar conhecido como “Buraco”, habitava uma família. Uma “casa” ironicamente improvisada, assim como os móveis. Um homem nos recebeu. Engraçado ou não, nos convidou para sentar. E até teríamos feito isso não fosse a nossa missão de continuar convidando outras pessoas. Percebi laços de amizade supostamente firmados entre o meu grupo e eles. Digo meu grupo porque eu estava naquele lugar no mesmo intento. Mas quase todos eram novos pra mim. Eu estava ali por um acaso, por causa de um convite feito e rapidamente aceito.

Naquele momento entendi que nunca me percebi tão forte, tão fraca, tão fragilizada. Um turbilhão de perguntas e sentimentos invadiam meu ser. Como poderiam pessoas viver naquelas condições? Como poderiam viver tão presas àquela situação mesmo estando livres?

Vi mulheres, ainda tão meninas, entregues à maconha, à bebida e à prostituição. Restavam-lhes apenas traços de uma beleza longíqua e breve. Eu as fitava, não conseguia evitar. Eu percebia o fedor que lhes saía do ser. Sim, elas fediam. Mas, não era o fedor de um banho não tomado, de um perfume não usado ou de uma roupa não limpa. Não, não era simplesmente isso. Era o fedor de uma sociedade que lhes fechava os olhos, era o fedor de um governo que lhes ignorava, era o fedor um povo que se afirmava cristão, mas que não as amava, seus olhares não conseguiam ultrapassar os limites dos templos. E esse mau cheiro lhes impregnava todo o ser. “E se fosse eu?” pensei. Foi nesse momento que as primeiras lágrimas me caíram dos olhos.

Prosseguimos. Andávamos por aqueles becos sem medo. Ali estávamos seguros, ainda que perigosamente. Sempre que encontrávamos alguém, era possível ouvir “boa-noite, como vai, fulano?”. Nomes eram citados a todo tempo. Havia apertos de mão e abraços. Havia ali laços de amizade estranhamente criados.

Não sei precisar o tempo que gastamos andando por ali convidando pessoas. Talvez tenha sido cronologicamente pouco, mas psicologicamente suficiente para me transportar para outras dimensões do espaço, do tempo, da razão.

Juntamo-nos a outra parte do grupo que continuava a entoar canções. Aos poucos, algumas pessoas foram timidamente aparecendo. Ali cantamos juntos, ouvimos falar de um Deus que ama, que muda histórias. Oramos pedindo a Ele pra alcançar cada vida ali e fazer algo. Servimos a sopa. Eu, que sempre senti repulsa por baratas, percebi-me retirando gentilmente meus pés do caminho para que esses insetos moradores da Rua do Amor pudessem transitar livremente por aquele lugar. Eles não eram estranhos aos outros moradores, humanos-bichos-humanos.

Consigo me recordar plenamente da deliciosa oportunidade que tivemos de conversar, de conhecer um pouco daquelas pessoas, de ouvir vozes tão silenciadas pelas circunstâncias da vida. De algumas pudemos escutar apenas gemidos. A grande maioria daquele pequeno grupo que ali estava, se foi rápido. Mas, curiosamente, ficaram algumas pessoas. Percebi o quanto estavam sedentas de atenção, de amor, de humanidade. Algumas demonstraram insatisfação por nossos olhares. Percebi que precisávamos olhá-los com o coração, não simplesmente com olhos supostamente humanos.

Terminado aquele momento, era hora de retornar. Só muito depois é que percebi o quão tarde já era. Havíamos ficado ali um tempo que considerei muito breve dada a necessidade deles, mas muito intenso dada a reflexão que em mim desencadeou. Foi então que entendi por que aquele lugar é chamado de “Rua do Amor”. Pra caminhar por ele é preciso ter muito amor, é preciso ser movido por amor, é preciso se deixar ser guiado pelo amor por vidas que precisam ser alcançadas, é um lugar extremamente carente de amor.

Fotos? Foram mentalmente tiradas, já que obter as reais era um risco muito grande, não de ter as câmeras roubadas, mas de afastar aqueles dos quais tanto queríamos nos aproximar. Entendemos que não poderíamos afastar corpos cujas almas ansiávamos demasiadamente alcançar.

Aos poucos a visão daquele lugar foi sumindo no retrovisor do carro. No rosto daquelas pessoas ficava a esperança de nosso grupo retornar na próxima quarta-feira, como era de costume. Na minha mente, ficava o conceito de sociedade que dava lugar à confusão e que agora eu começava a questionar. No meu coração, um amor doído pulsava, desumanizando-se, humanizando-se...

2 comentários:

  1. Quase não consigo bater os dedos no teclado para fazer esse comentário. Isto é maravilhoso, como maravilhoso é estar lá, na "Rua do amor". Rejane você descreveu muito bem aquele lugar. Parabéns pelo texto!! Me deixou quase sem ação.
    Fica o convite para voltar lá. Agora a sopa é servida ás quintas-feiras.

    um beijo amada!

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